Falar sobre a escrita terapêutica é como se estivéssemos falando de uma técnica. Descoberta por psicólogos? Não. Acredito que os poetas, os escritores romancistas e outros já faziam isso por meio de suas escritas. Externavam sentimentos e os transformava, sem a intencionalidade ou clareza de que fossem terapêuticos para si ou para outros. Até mesmo as velhas cartas trocadas com amigos ou aquelas escritas e nunca enviadas poderiam ser uma forma de castigar o papel com os sentimentos não desvendados (…escrevo essas mal traçadas linhas para...).
Escrever é uma criação!
Podemos escrever para nós mesmos. Lembram do “Querido diário”? Pois então! Desde cedo somos incentivados a colocar no papel nossos sentimentos, anotações, desenhos, projetos, sonhos! São vários os conteúdos dessa escrita e as formas de se colocar no papel, paredes, pedras, areia, árvores, etc.
Certa vez, assisti a um filme cujo título é “Cartas para Deus”, consistia na história de um “um menino de apenas oito anos de idade que tinha câncer e escrevia suas orações em forma de cartas para seu amigo Deus. Ao mesmo tempo um carteiro buscando um sentido para a vida, encontra as orações (as cartas) do garoto e resolve ajudá-lo a mudar o destino de todos a seu redor”… Neste filme podemos observar o quanto a escrita era libertadora para o menino na situação em que ele se encontrava, e, também libertadora para outras pessoas as quais foram alcançadas trazendo esperança e realização.
Também no filme “Firebrand” (disponível na Netflix), o autor explora uma história de abuso vivido por uma advogada de sucesso, descortinando a história explorando a autodescoberta e a catarse. Numa das sessões de terapia, o terapeuta recomenda uma técnica para fazer com que sua paciente se liberte do trauma de uma experiência de abuso sofrida na infância; a paciente deveria escrever para si mesma a história com todos os detalhes e em seguida deveria ler em frente ao espelho até que não fizesse mais sentido a revivescência de imagens mentais sobre o fato (isso porque ela tinha flash de memória sobre o ocorrido, e essas memórias lhe traziam muito sofrimento). Passado alguns dias ela volta à sessão de terapia junto com o marido, e ele relata ao terapeuta que acha que ela não iria aguentar concluir a tarefa porque toda vez que lia ela caia em prantos. Mas o médico diz que ela deve continuar até esvaziar todo sofrimento e libertar-se para viver o presente.
Desse modo ela pôde entender e aceitar que não tinha culpa pelo que aconteceu e viver a partir de então, as emoções antes reprimidas.
A adoção da escrita para detalhar planos e projetos a serem realizados a curto, médio e longo prazo ou o traçado de um desenho ou rabiscos após um sonho impactante durante o sono, podem trazer revelações íntimas do inconsciente que no sentido consciente desconhecemos ou negamos. Sim! É bom ter um diário dos sonhos!
A realização de uma viagem, os pontos que por algum motivo se quer imprimir na memória; detalhes que a fotografia não é capaz de revelar!!! Impressões, dèjà-vu?, ideias que surgem, insights, descobertas.
Considerando que a experiência da escrita é uma concretização de uma estrutura cognitiva que envolve coordenação motora, pensamento, linguagem, criatividade; vale usar todos os recursos criativos disponíveis para além do simplesmente escrever… Devemos criar memórias!
Assim, a ideia de escrever um diário era para registrarmos fatos e acontecimentos do dia que seriam rememorados posteriormente, como numa fotografia. Porém, entre aqueles registros inocentes do “querido diário” havia também os “não ditos”, medos, segredos da alma incompreendida, a dificuldade de se expressar no mundo, as paixões secretas e até mesmo o ódio contido e o audível. Jó diz: “O ouvido prova as palavras”.
Escrever é uma inspiração
Virginia Woolf (1882 – 1941), em “Profissões para mulheres, outros artigos feministas”, descreve sua experiência com a escrita: “quando comecei a escrever, eram pouquíssimos os obstáculos concretos em meu caminho. Escrever era uma atividade respeitável e inofensiva. O riscar da caneta não perturbava a paz do lar. Não se retirava nada do orçamento familiar…”.
Aqui, Virgínia Woolf estava relatando como sua escrita a transformou numa escritora e a profissionalizou. Ela diz em seguida que começou de modo simples, com apenas uma caneta e um papel, trancava-se em seu quarto e escrevia o que lhe viesse à mente até que teve a ideia de enviar o que escrevia para um jornal e então passou a ser um ofício.
Freud escrevia e reescrevia seus artigos reeditando sua própria escrita, Viktor Frankl teve o seu primeiro manuscrito destruído no campo de concentração, mas continuou imaginar a escrita em sua mente para não esquecê-los; Cora Coralina escrevia seus poemas apesar de precisar da permissão do marido para publicá-los; Rubem Alves escreveu histórias para crianças a partir das histórias contadas para sua filha; essas e outras histórias nos mostram que a escrita é uma necessidade, denota sentimentos e arte transformando vidas.
E como a escrita pode ser terapêutica?
Parte então da necessidade, é de dentro para fora que ela acontece, quando usada como recurso no processo terapêutico ela pode possibilitar o acesso às memórias esquecidas, importantes no desatar dos nós das dores que possivelmente carregamos.
Sugestões de exercícios:
- Faça imagens mentais, meditação e em seguida anote os pensamentos que ocorrerem;
- Anote os sonhos que acontecem durante o sono;
- Escreva sobre experiências indesejáveis, leia e releia até esgotar os detalhes que insistem em ocupar seus pensamentos;
- Descreva seus medos em uma palavra, depois escreva frases a respeito das possibilidades para vencê-los;
- Escreva um diário.
Antonia Mota Neta
Bibliografia
- CARTAS PARA DEUS. Filme dirigido por David Nixon, Produtora: Possibility Pictures, Netflix. 2010.
- Freud, Sigmund, 1856-1939. Interpretação dos Sonhos / Sigmund Freud : [Tradução: Walderedo Ismael de Oliveira] Ed. São Paulo: Folha de São Paulo, 2010.
- FIREBRAND – filme indiano escrito e dirigido por Aruna Ranje, Netflix, 2019.
- Frankl, Viktor E. Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração / Viktor E. Frankl. Traduzido por Walter O. Schulupp e Carlos C. Aveline. 52. Ed. – São Leopoldo : Sinodal; Petrópolis : Vozes, 2021.
- Gonçalo Junior, 1967– É uma pena não viver: uma biografia de Rubem Alves/Gonçalo Junior. – São Paulo: Planeta do Brasil, 2015. 496p.
- Woolf, Virginia, 1882-1941. Profissões para mulheres e outros artigos feministas / Virginia Woolf; Tradução de Denise Bottmann Porto Aegre, 2019. 112p. https://pt.m.wikipedia.org> Pesquisado em 07/09/2021
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