A Depressão e a velocidade no século XXI

A Depressão e a velocidade no século XXI

Começo esse texto pedindo a você leitor que faça um exercício de imaginação, vamos juntos fazer uma espécie de viagem mental e olharemos o passado como num filme, uma cena. 

De acordo com a história e a arqueologia, temos uma noção de como era o ambiente em que o ser humano se desenvolveu. Imaginemos agora como era a vida das antigas tribos humanas e todo o ambiente por eles habitado. Apesar de haverem muitos perigos, predadores, doenças, falta de conhecimento e inexistência do cuidado em saúde, uma coisa é certa: os humanos tinham mais tempo para si mesmos e podiam fazer as coisas com maior lentidão do que hoje.

A espécie humana possui uma capacidade única de adaptação, quando comparada as outras espécies de animais. Isso não quer dizer, no entanto, que certas mudanças ambientais não alteram também as nossas emoções e nosso modo de funcionamento psicológico.

Agora, antes de adentrarmos em questões a respeito das patologias listadas no título desse texto, é necessária uma pequena digressão a respeito da psique, essa que é o radical grego presente na palavra “psicologia”. 

Psique, no grego, é um termo relativo à Alma. Logica, por sua vez, deriva de Logos que significa discurso, palavra, pensamento ou fundamento. A psicologia é, em suma, o discurso, o diálogo, pensamento ou mesmo fundamento da Alma.

No volume 13 das obras completas de Carl Gustav Jung, parágrafo 75, encontramos uma definição de que “Psique é imagem” e a atividade psiquica pode ser descrita como um imaginar. Imagem aqui, porém, não se refere a uma fotografia, uma cena, ou uma impressão visual.

James Hillman, um pós-junguiano, cita Casey em seu livro “Psicologia Arquetipica” para explicar o que é imagem em psicologia: “Imagem não é aquilo que se vê, mas a maneira como se vê. Uma imagem é dada pela perspectiva imaginativa e só pode ser percebida pelo ato de imaginar”. 

A maneira mais fácil de entender isso é pensarmos nos sonhos e devaneios. Basta que a consciência fique rebaixada para surgir uma sucessiva formação de imagens, cenas, com humores, inclusive com a nossa presença, e em geral, independente de qualquer vontade ou posição de nossas consciências despertas.

Nos sonhos, nos devaneios, somos tal qual personagens, ocupamos certos papéis enquanto o enredo se desenrola. Essa é a atividade psiquica na forma mais pura que podemos ter acesso e daí a importância dos sonhos para a psicoterapia de base junguiana. A Alma consiste na perspectiva imaginativa que temos, na maneira como encaramos e vivemos as experiências da vida.

Olhemos agora para os diferentes períodos históricos e as plurais organizações humanas existentes ao longo de toda a história de nossa espécie.

Concordamos, acredito, que nossas perspectivas imaginativas a respeito da vida tem variado bastante em relação a cultura, em relação a geografia, em relação as experiências individuais e coletivas, em relação as diferentes maneiras e formas da percepção e do que se percebe. 

Alma, portanto, se refere a algo coletivo, não é meu ou seu. Não está em mim ou em você. Nós é quem estamos na Alma e somos imaginados por ela, diz James Hillman.

A percepção tem papel especial para a Alma. Hillman nos diz que a Alma se preocupa com quatro coisas: beleza, aprofundamento, comunidade e morte, o fim. Com a palavra beleza ou estética, Hillman não se refere ao “embelezamento”, essa atividade “desodorizada” e “sanitarizada”, mas sim a aesthesis, do grego, que signfica percepção, sensibilidade.

Em Cidade e Alma, página 23, Hillman nos alerta que “a melhora da qualidade de vida depende da restauração de uma imagem/linguagem que preste atenção as qualidades da vida”.

O leitor percebe importância do aprofundamento a partir da percepção do mundo? Isso implica que para que haja esse reconhecimento das qualidades da vida, cultivemos Alma — fazer alma –, cultivemos experiência, percepção, que nos debrucemos realmente sobre a vida. Hillman recorre a um trecho da obra do poeta inglês John Keats:

“Chame o mundo, por favor, de vale de fazer alma,…

… descobrirás, então, para que serve o mundo”.

A Psicanálise de Freud surge a partir do olhar atento para a histeria. A Psicologia Analítica de Jung surge a partir da experiência com a esquizofrenia. A Psicologia Arquetípica de Hillman porém, surge de percepções em relação à depressão. 

O mundo vive hoje em excesso de aceleração, globalização, trânsito rápido de mercadorias, consumo e descarte rápido para mais consumo. Um mundo bastante individualizado, com um sistema de produção capaz de te oferecer produtos personalizados a partir do seu gosto pessoal, mas um mundo escasso de profundidade, de verdadeira interioridade. 

Não é de se espantar que a psique produza uma patologia tão contrastante a esse modo de vida, uma doença que desacelera, que retira nossa energia, que nos faz questionar sentidos e significados. Jung escreve que a psique funciona como num sistema de equilíbrio energético, tal qual um organismo vivo, buscando a homeostase.

Portanto, o inconsciente trabalha de modo a contrastar posições unilaterais da nossa consciência. É, nesse sentido, esperado que tenhamos certas patologias em contraponto a esse caminhar em uma única direção.

A depressão pretende, ao que parece, colocar-nos em contato com a Alma e sua atividade, o imaginar. Parece nos deslocar para realocar em relação ao todo de nossas vidas. É um deslocamento que visa equilibrar essa posição maníaca de nossa cultura. 

Em “Re-vendo a psicologia”, Hillman propõe um olhar crítico da fantasia cristã de sempre esperar dias melhores e negar de forma ferrenha os momentos depressivos, tristes ou vazios. Essa imaginação separa aspectos interdependentes: felicidade – tristeza, mania – depressão, bom – mal.

Todas essas dualidades não são opostas, no sentido de excludentes. Cada lado existe apenas pela existência do outro. Achar que podemos viver num estado puro de alegria e felicidade é um delírio do ego, uma defesa maníaca. 

A psicoterapia de base arquetípica, como pretendo realizar seguindo Jung e Hillman, objetiva a recuperação de um sentido de Alma, de que Psique é anterior ao nosso Ego, ao nosso eu. Busca recuperar a totalidade do ser e quebrar idealizações de perfeição. O eu nesse sentido, deixa de ter qualidades bélicas, guerreiras, passando a atitude de zelo, cuidado em relação a Alma e o mundo. Essa posição é um movimento cultural, uma crítica a sociedade da performance que cultua o poder. 

A psicoterapia que visa o fazer Alma é pautada principalmente no amor e nas relações como estratégia de aprofundamento, assim como o cultivo da atividade imaginativa. Visa, conforme descrito anteriormente, uma percepção acurada, a beleza das coisas — até nas negativas –, a comunidade — as relações e suas dificuldades por meio do exercício do amor –, o aprofundamento — por meio da atividade da reflexão, dar as costas, tomar o tempo necessário para a elaboração e inclusive elaboração das percepções — e a morte, como o fim, o como acaba, as marcas que foram deixadas.

O contato com a inevitabilidade da morte nos desperta para o agora, a experiência a partir de nossas ligações, reflexões e as marcas que deixamos e queremos deixar na vida.

O atendimento psicológico é percebido como uma espécie de arte, o cultivo de nossas almas, uma experiência apurada de amor, beleza, comunhão, mas também, igualmente, de dificuldades e sofrimentos, tão importantes para o percurso. A meta é tornar-se a si mesmo, quem és verdadeiramente. 

Essa meta exige trabalho enquanto houver vida e, portanto, não tem fim, mas esse fato ressalta que o que verdadeiramente importa é o caminho e o caminhar, o deleite e apreciação das paisagens, a imersão na vida e no viver, ao invés da efêmera chegada.

Referências:

  1. HILLMAN, J. Cidade e Alma. São Paulo: Studio Nobel, 1993.
  2. HILLMAN, J. Re-vendo a psicologia. Petrópolis: Vozes, 2010.
  3. HILLMAN, J. Psicologia Arquetípica. São Paulo: Cultrix, 1995.
  4. JUNG, C. G. Estudos Alquímicos. O.C. Vol. 13. Petrópolis: Vozes, 2013.
Lucas Silva Felz
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