O relógio está acelerado ou nós é que nos aceleramos?

O relógio está acelerado ou nós é que nos aceleramos?

O uso das tecnologias digitais e a nossa relação com o tempo

Você acha que falta tempo no seu dia? Se sente ansioso, cansado e frustrado com frequência? Estas perguntas talvez não tivessem tanta repercussão há algumas décadas quanto hoje, em contextos em que a tecnologia digital está presente a todo instante.

Na verdade, falamos muito da falta de tempo, mas pouco paramos para escutar, perceber e sentir a dimensão temporal da nossa experiência enquanto sujeitos e coletividades.

A produtividade do tempo: controle ou qualidade?

Com os avanços tecnológicos aumentamos a nossa capacidade para realizar atividades em um menor espaço de tempo e otimizamos os processos de trabalho.

Mas se certas tecnologias poderiam poupar o nosso tempo, por que sentimos que o relógio está cada vez mais acelerado? A questão é que estes avanços foram produzidos em uma cultura que valoriza a produtividade em todas as áreas da vida: no trabalho, no lazer, na produção de uma imagem própria. Portanto, se sobra tempo, por conta das horas de deslocamentos e tarefas poupadas, sentimos que devemos torná-lo produtivo ao máximo, ocupando-o com mais e mais coisas de forma a aperfeiçoar a nossa performance. A moeda de valor social está, assim, ligada ao fazer e não ao descanso, à pausa ou à fruição espontânea do tempo.

Podemos nos perguntar, a partir disso: Como eu me sinto quando não correspondo ao que é valorizado socialmente? E deixar reverberar um pouco aí o que essa pergunta provoca…

Além disso, somos bombardeados com múltiplos anúncios, cardápios cinematográficos, músicas e imagens da vida dos outros que nos contam sobre múltiplas possibilidades de (ter que) ser “feliz”. As telas gritam “escolha!”; “seja feliz!” e nós buscamos nos ajustar a esses imperativos para fazer parte. Desta forma, acreditamos que podemos escolher e ser felizes o tempo todo, se não o fizermos estaremos excluídos, com um atestado de incapacidade na testa. Mas será que isso não gera mais sofrimento do que bem-estar? Essa idealização não acompanha a complexidade da nossa experiência concreta e subjetiva, gerando uma sensação constante de frustração e inadequação. E ainda, pode causar ansiedade, cansaço e sobrecarga emocional, ao pensarmos que podemos controlar a nossa felicidade de forma racional a partir das escolhas que fazemos a cada instante. Desconsideramos, assim, a experiência produzida no encontro com o outro, com o imprevisível e o impossível da vida e o que fazemos e criamos quando nos deparamos com isso.

A experiência do tempo, a partir dessa lógica, fica quase totalmente condicionada à sua dimensão quantitativa, em detrimento da sua dimensão qualitativa. Isto é, a contagem e o controle do tempo para fins de organização pessoal e social passa a dominar a nossa forma de viver. Logo, a necessidade de controlar a produtividade e o uso do tempo a todo instante pode reforçar a nossa sensação de falta de tempo, pois não conseguimos descansar, relaxar e improvisar.

Portanto, a dimensão qualitativa do tempo, isto é, a intensidade do momento e a compreensão de que cada coisa tem seu tempo (e que não podemos controlá-lo a toda hora) fica, assim, prejudicada. Nos distanciamos da nossa própria experiência e somos menos afetados por ela, uma vez que não estamos abertos para o que surge, e sim na retaguarda do controle. Assim, nos sentimos menos vivos – sem viver o próprio tempo.

Em resumo, falta tempo porque não estamos aqui, diante da vida como ela se apresenta a cada momento.

A ilusão que os aparelhos nos contaram: o imediatismo e a pressa

A partir disso, podemos pensar em um segundo aspecto: por que estamos sempre com pressa? A paciência para aquilo que nos demanda tempo diminuiu: ler um livro, aprender um instrumento, escutar os outros e assim por diante… chegamos em um ponto em que uma fila de dez minutos pode ser insuportável e um áudio de um minuto parece longo demais.

Mais uma vez, a dimensão quantitativa do tempo ganha da qualitativa. Não compreendemos os processos, os ciclos, nem aceitamos o tempo que leva cada coisa, precisamos medir o tempo de tudo que fazemos, porque senão, o perderemos. Nesse caso, a produtividade agarrando o nosso tempo, parece se juntar a um outro elemento: o imediatismo.

Os aparelhos tecnológicos, no geral, nos contaram a ilusão de que tudo que queremos podemos fazer mais rápido: apertamos botões, acendemos sensores com a ponta dos dedos e a mágica está feita. Exercemos múltiplas atividades em um só aparelho, em tempo recorde, sem nos movermos no espaço. Aprendemos sem precisar ler um livro inteiro, podemos escutar vídeos explicativos ou podcasts. E isso tudo não é ruim, pelo contrário, amplia a acessibilidade de acesso a atividades e informações. Mas ao mesmo tempo, reforça a lógica do imediato, isto é, do que é sem mediação. Nos acostumamos, portanto, com a velocidade e com a facilidade com a qual as coisas podem acontecer sem a mediação do tempo, do espaço, do outro, de nós mesmos e acreditamos que tudo pode operar a partir dessa lógica. Deixamos, assim, de nutrir a musculatura dos processos que demandam esforço, deslocamento, paciência e que não nos dão resultados imediatos.

É interessante, nesse caso, nos lembrarmos que o tempo é mediador para que a vida aconteça. Durante e depois que o áudio de um minuto acelerado em duas vezes acabar, vivemos o quê? Estamos indo para onde com tanta pressa? É sempre bom perguntar…

Sustentar os processos, seus desconfortos, suportar o não saber enquanto se aprende, atravessar as situações difíceis e demoradas é fundamental para o amadurecimento emocional. Sem isso, passamos mais tempo evitando sentimentos, tarefas, situações, pessoas, pois não desenvolvemos recursos emocionais e acabamos optando pelas saídas fáceis e rápidas. Por isso, desenvolver responsabilidade (responder de forma singular diante da vida) tem a ver com o quanto eu me implico com aquilo que demanda tempo, risco, espera, incerteza e não pode ser resolvido de forma imediata.

Tomar o tempo nas mãos e deixar-se(r) rio: como a psicanálise pode contribuir?

Antes de falar em psicanálise – ou ao mesmo tempo – é importante marcar que o sistema econômico neoliberal em que vivemos toma o tempo de muitas pessoas, pela exploração da vitalidade, do desejo, e da força de trabalho. A autonomia que cada um tem sobre a gestão de seu tempo passa em primeiro lugar pela possibilidade concreta de fazer isso. A (im)possibilidade de gerir o próprio tempo de formas mais saudáveis passa pela maneira como a sociedade está organizada social, cultural e politicamente. E essa sobrecarga advinda da exploração do tempo tem gênero, cor e endereço. Partir deste ponto, portanto, quer dizer que a reorganização do nosso tempo subjetivo está inevitavelmente atrelada à reorganização coletiva do tempo.

Se vivemos em uma cultura cada vez mais digitalizada, a noção de produtividade deste mesmo sistema colonizador e exploratório, portanto, adentra na experiência do tempo, através das tecnologias digitais, seja em nome do trabalho, da imagem, do imperativo por felicidade ou do rendimento em geral.

Temos no corpo um enorme cansaço, e nas mãos um grande desafio: cuidar do tempo para que ele não adoeça – e nem a gente. Ailton Krenak, em “Antes o mundo não existia” nos ensina que o tempo é a própria sustentação da vida, a eterna repetição da criação do mundo. Por isso, a sua relação com o tempo é inseparável da sua relação com a natureza. Os gestos, os sons, o corpo e a percepção de seu povo estão em conexão direta com os seres e as memórias que guardam a terra.

Por outro lado, as texturas, os cheiros, as profundidades, os ritmos, o movimento, a diferença e o impacto de cada acontecimento, na era digital, estão plasmados pela tela em um mesmo feed. E isso talvez nos distancie, de alguma forma, do tempo – memória e natureza – como sustentação da vida, que não pode ser plasmada, nem quantificada em sua totalidade. 

E algo escapa daí – seja o coração acelerado, a respiração que não assenta, o nó na garganta, o pensamento que não cessa. A partir disso, podemos nos perguntar: É possível imaginar um projeto de sociedade que não instrumentalize a vida a ponto de perdermos a consciência do tempo? É certo que precisamos da cronologia para nos organizarmos e que a tecnologia pode auxiliar muito a nossa vida, mas podemos nos perguntar quando estes aparatos estão ao nosso favor e quando passam a dominar a nossa experiência.

As saídas não estão prontas, mas existem algumas apostas que podemos fazer sobre a criação e a improvisação de caminhos que sustentem o tempo como experiência. O sonho e a palavra, por exemplo, no olhar de Krenak, são meios para acessarmos a memória da criação do mundo. Para ele, uma cultura que só sabe guardar sua memória em caixotes e acervos – e aqui podemos acrescentar, no HD e na nuvem – desaprendeu a sonhar. Produzir espaços para que a palavra, o sonho, e a memória habitem o corpo de forma viva, portanto, talvez possa contribuir para uma ruptura na instrumentalização da experiência e a criação de outras formas de organização em sociedade.

É neste sentido, se olharmos para uma dimensão micropolítica do tempo, compreendemos a psicanálise como uma ruptura no tempo cronológico. Parar para recordar seus sonhos e memórias, falar de suas angústias e desejos, ser escutado e se escutar é um cuidado com o seu próprio tempo. Lacan nos traz a ideia do tempo como corte, descontinuidade e instante, quando o sujeito diante de sua finitude, se coloca diante do tempo. O tempo, na sua perspectiva, não é o do relógio, indiferenciado e universal, mas o do inconsciente, múltiplo e singular. A subjetividade, portanto, é multitemporal, uma vez que atravessamos diversas temporalidades em um emaranhado de linhas, dobras, pausas, rupturas. É por isso que a psicanálise nos convida a nadar contra a corrente – em uma cultura que nos impõe a pressa, intervalos curtos de elaboração, onde o tempo é achatado – esperar, pausar e elaborar é nadar contra a corrente e a favor do nosso tempo. É inventar um gesto, dentre os gestos singulares, que possa produzir faíscas no circuito das respostas universalizantes, milagrosas e imediatas e nos colocarmos diante do tempo e da vida.

Referências

  1. Gondar, J. (2006). Winnicott, Bergson, Lacan: tempo e psicanálise. Ágora (Rio J.). 9(1).
  2. KRENAK, A. antes, o mundo não existia. in: NOVAES, a. (Org.). Tempo e História. São Paulo: companhia das Letras, 1992, 201-204.
  3. MOSQUETA, A. P. M. (2014). O tempo na clínica gestáltica: entrelaçando conceitos e vivências. AW@RE VER. ELET. 4 (1), 11- 21.
Luisa Evangelista Vieira Prudêncio
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