O mundo contemporâneo traz consigo uma inovação na busca por respostas quando se tem qualquer tipo de dúvida: a internet. Quem viveu anos anteriores aos 2000 sabe como era a sensação de pesquisar em enciclopédias ou almanaques. Sabe também da demanda maior por especialistas que pudessem, dentro de suas áreas, responder a questionamentos diversos.
O que vemos hoje, com a rapidez da informação e o cotidiano intensamente corrido, é um intenso uso das ferramentas de busca na internet quando se tem qualquer dúvida, seja ela sobre a própria saúde, sobre como instalar uma lâmpada ou fritar um ovo.
Contudo, este meio não se limita a coisas tão simples. Os diagnósticos são infinitos quando se busca explicações para coisas triviais ou que envolvam a subjetividade humana, e quando falamos sobre criar filhos e filhas, educar crianças e inseri-las no campo da cultura ao qual estamos, este pode ser o início de um acúmulo de angústias para mães e pais, responsáveis e profissionais de educação, principalmente de crianças muito pequenas.
Que atire a primeira pedra a família que nunca se encontrou no Google pesquisando sobre formas de fazer um bebê dormir, passar as cólicas, fazer a introdução alimentar ou educar conforme os comportamentos “adequados” à sociedade.
E tal busca por vezes nos traz respostas simples, objetivas, padronizadas e normatizadoras, que consideram a criança como um ser padrão, independente do contexto em que está inserida, trazendo em si ainda mais dúvidas e angústias para familiares aflitos em sua relação enquanto pais e mães que não encontram soluções tão simples frente às suas dificuldades.
Há que se pensar que por vezes a busca por respostas não está em outro lugar senão na própria criança e na família em que está inserida, estando isenta de uma explicação ou de um ensinamento profissional, seja ele em forma de atendimento ou em texto e vídeo na internet.
Então não há necessidade de intervenção profissional na criação de uma criança?
Quando pensamos que há qualquer tipo de sofrimento da criança, seja por algo biológico ou psíquico, obviamente que as intervenções se fazem necessárias. O fato é que devemos considerar que muitas angústias provenientes dos responsáveis pela criança dizem respeito a uma padronização de comportamento que se espera dela, seja no âmbito familiar ou principalmente na escola.
Há um intenso padrão, seja do comportamento infantil, da composição familiar ou do modo como “se deve” criar as crianças. Ora, há inúmeros textos, vídeos e até mesmo cursos sobre como criar filhos, algo que deveria ter uma essência natural ou que poderia provir de uma coisa importantíssima chamada REDE DE APOIO, alicerce milenar que sempre deu suporte às famílias em diversas culturas.
Os modelos de família atribuídos a comerciais de margarina já não explicam nem são parâmetros às relações familiares atuais, muito menos em um mundo em que diversas famílias tocadas por mães solo ou famílias homoparentais se mostram plenamente capazes de criar crianças saudáveis, contrariando e desmistificando todo o estigma que lhes foi atribuído, inclusive pelas ciências médicas e psicológicas.
Parte de tanto sofrimento se dá ainda na imposição de uma necessidade econômica imposta às famílias, até mesmo pelo mundo do consumo, em que crianças cada vez mais novas são institucionalizadas ou seus cuidados são terceirizados.
Muitas vezes na busca por compensação, os responsáveis tentam tamponar a falta, mergulhando cada vez mais no trabalho para substituir a ausência com bens materiais.
São escolhas difíceis, pois o contexto em que vivemos exige e empurra as pessoas para o mundo do trabalho, ao passo que há o sofrimento pela distância dos filhos em momentos cruciais de seu desenvolvimento, conciliado com o abrir mão de seus próprios desejos em prol do cuidado exigente com a criança.
Nesta busca desgastante pela completude, pais e mães se esquecem o quanto o afeto não é quantitativo e nem materializado, e que fazem o que podem dentro de suas condições de criação.
Como diz a psicanalista Vera Iaconelli (2020), na parentalidade nunca há garantias, sempre sobram arestas. Algo assim não pode ser analisado e direcionado por qualquer especialista como uma patologia ou por meio de diagnósticos e julgamentos. Há um limiar muito complexo entre diagnosticar e compreender a família que chega a um profissional ou que busca respostas padronizadas.
No entanto, o que podemos pensar é que buscar respostas prontas, ainda que por profissionais, sobre qual a melhor forma de lidar com as angústias e as arestas que ficam no processo de parentalidade nem sempre é a melhor solução. As respostas, não raro, são normatizadoras, e podem colocar pais e mães ainda mais pregados em uma cruz da qual a própria culpa já os colocou.
É importante frisar que a falta, no viés psicológico e principalmente da psicanálise, é estruturante, e tentar ocultá-la ou tamponar-lá com qualquer artifício que seja, somente traz ainda mais arestas na criação dos filhos e seu desenvolvimento psíquico, e quando um profissional se direciona em ajudar as famílias a suprir estas faltas e chegar a uma suposta perfeição ou plenitude na criação dos filhos, aí sim podemos considerar que há algo complexo e
possivelmente problemático. É na promessa de alcançar o idealizado que o bicho pega.
Mas, há um modo familiar e de relação que seja ideal?
O ideal não existe. Ele está no mundo das ideias. Criar filhos é uma tarefa árdua àqueles que se dispõem a ela. Parentalidade significa a transmissão de valores culturais e um conjunto de símbolos que uma geração deixa à outra, e isto remete a um conflito muito grande de desejos. Desejos da criança, um sujeito que a cada dia se forma e se individualiza em sua subjetividade e individualidade, e desejos da família, que fantasia e vislumbra todo um futuro para este pequeno ser.
Compreender que cada um tem uma função dentro da formação familiar é de extrema importância, não importa qual modelo de família estamos falando.
Quando falamos de função materna, não estamos destinando e engessando à mãe os cuidados da criança, assim como a função paterna pode ser exercida tranquilamente sem ser pelo genitor da criança.
Fora de uma norma e de um padrão sobre como deve ser uma família para que a criança cresça da forma “adequada” (a quê?), é mais preciso que pensemos como a família em que a criança se inseriu pode acolhê-la de modo a constituir sua subjetividade e sua formação psíquica, não importando o modelo familiar.
Todas as pessoas podem e devem ter direitos a formarem suas famílias sem serem classificadas ou julgadas por qualquer área profissional ou especialistas.
Então, qual o papel de profissionais que intervenham sobre crianças e suas famílias?
É muito comum que haja intervenções profissionais sobre as famílias, seja em escolas, consultórios, instituições de acolhimento, etc. Todavia, ressalta-se aqui que não há uma “receita de bolo” que possa ser ditada por qualquer especialista que seja.
A importância das mais diversas disciplinas e seus profissionais correspondentes está muito mais no acolhimento às famílias e crianças que estão em sofrimento do que no ditado de regras sobre que modelo familiar deve se seguir, que modos de relacionamento deve-se ter com os filhos.
Cabe ainda a estes profissionais que trabalhem sempre na direção da compreensão sem julgamentos normativos, que qualifiquem famílias sem considerar seus contextos, além de diálogo permanente entre si visando o acolhimento orientador e com participação ativa dos protagonistas, nunca padronizador.
A conjugação do verbo “dever” é quem deveria se ausentar quando se acolhe ou atende uma família em sofrimento na relação pais, mães e crianças, o que pode se expandir para a família estendida responsável pela criação ou até mesmo por profissionais de educação que exercem papel importantíssimo no desenvolvimento de bebês e crianças.
Não há dever (além daqueles legais, como os estabelecidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente), há o cuidado, em se prover as condições mínimas para que se crie um sujeito biológica, física e psiquicamente saudável, provendo-lhe a existência de seus desejos desatrelados daqueles da família em sua singularidade.
Repassando-lhe os valores aos quais está inserido, a simbologia em saber lidar com a frustração, em ter a palavra circulando, para que, através da linguagem, este sujeito se alinhe ao seu desenvolvimento. E tudo isso se dá muito mais no âmbito familiar e na devida rede de apoio do que em consultórios ou posts.
Referências:
BERNARDINO, L. M. F.; KUPFER, M. C. M. A criança como mestre do gozo da família atual: desdobramentos da “pesquisa de indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil”. Revista Mal-Estar e Subjetividade, Fortaleza, v. VIII, n. 3, p. 661-680, set. 2008.
IACONELLI, Vera. “Sobre as origens: muito além da mãe”. In: GARRAFA, Thais; IACONELLI, Vera; TEPERMAN, Daniela. (org.). Parentalidade. 1ed., Belo Horizonte: Autêntica, 2020 – (Coleção Parentalidade e Psicanálise.; 1)
ROSA, Mirian Debieux. “Passa anel: famílias, transmissão e tradição”. In: GARRAFA, Thais; IACONELLI, Vera; TEPERMAN, Daniela. (org.). Parentalidade. 1ed., Belo Horizonte: Autêntica, 2020 – (Coleção Parentalidade e Psicanálise.; 1)
SCHOLZ, Ana Luíza Tomazetti et al . O exercício da parentalidade no contexto atual e o lugar da criança como protagonista. Estud. psicanal., Belo Horizonte , n. 44, p. 15-22, dez. 2015 . Disponível em
<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100- 34372015000200002&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 27 jan. 2021.
- Parentalidade e criação de filhos: Há um modelo a ser seguido? - 9 de fevereiro de 2021