Mudança de ano geralmente é aquele momento em que sonhar acordado se torna quase uma regra. Desse modo, se alguém que sonha acordado pedisse ao Papai Noel um kit felicidade, o que encontraria quando abrisse o presente? Maços de dinheiro? Uma “indicação” para o emprego ideal? Passagens de ida e volta para uma viagem ao paraíso do verão que inicia? As chaves da casa e do carro dos sonhos? Um convite para um romance infinito com a pessoa secretamente desejada? Talvez a maioria fizesse um ou mais desses pedidos. Mas se alguém pedisse ao Papai Noel por uma indicação de um bom terapeuta, possivelmente viraria motivo de meme.
Além de virar motivo de lacração, o que poderia acontecer a quem fizesse o último pedido? Para começo de conversa, alguém que fizesse tal pedido, logo nas primeiras sessões poderia perceber que felicidade não existe como presente recebido ou como algo que se possa comprar. Acabaria percebendo, mais cedo ou mais tarde, que uma boa terapia pode diminuir os momentos de infelicidade gerados por um emprego ruim (ou mesmo pelo desemprego), por uma paixão não correspondida, assim como mostrar que dinheiro, viagens e carros de luxo servem para gerar momentos felizes – que devem ser aproveitados quando acontecem -, sem garantia de felicidade eterna.
Um bom processo terapêutico
Um bom processo terapêutico pode ajudar a perceber, por mais estranho que pareça, que acreditar na felicidade eterna (dessas de filme ou de série) só gera infelicidade, mas buscar pequenos momentos felizes no cotidiano, como brincar com crianças ou com seu pet de estimação, ter um bom encontro com as pessoas realmente amigas, ou ter um momento sozinho para desfrutar a trilha sonora da própria vida, são exemplos que somam preciosos pontos na loteria cotidiana. Claro que ter dinheiro para pagar as contas pode diminuir o risco de infelicidade, mas um bom processo terapêutico pode ajudar a perceber o real custo emocional do trabalho que se realiza para pagar as contas, principalmente quando esse trabalho não é o ideal.
Vivemos em uma cultura que praticamente nos obriga a abraçar e exibir felicidade 24 horas por dia como forma de inclusão no seleto grupo dos felizes – e não é por acaso que o Instagram acaba sendo um gatilho para a depressão de quem inveja a felicidade ostentada por pessoas de referência, como celebridades. Assim, ao invés de facilitar a inclusão, a ostentação da felicidade acaba gerando exclusão para um bom número de seguidores. Esse é um dos motivos pelos quais precisamos exercitar o autocuidado principalmente na hora do lazer, pois o lazer consumido sem medidas rapidamente pode se transformar em infelicidade.
Esse autocuidado é uma ferramenta muito importante na sobrevivência cotidiana, e muitas vezes só é construído quando se passa por um processo terapêutico. Além disso, não devemos esquecer que para ter direito ao lazer muitas vezes trabalhamos muito e entramos na rota do burnout, do esgotamento das energias que podem transparecer em fotos sem filtro (não por acaso os aplicativos de filtro são dos mais desejados por quem adquire um smartphone novo). A cultura das selfies acabou tomando o lugar da busca do self. Já nem conseguimos perceber que além da vida ativa e ostentada precisamos ter uma vida contemplativa que não precisamos postar em redes sociais.
Se falamos de felicidade e de terapia, estamos falando de saúde mental. A questão é como preservar a saúde mental em tempos de pandemia e de crise econômica? Será que alguém pediria ao Papai Noel algumas “doses de saúde mental” sem medo de parecer que a própria saúde mental está abalada? Vamos trazer ao debate um nome que é referência mesmo para quem nunca o leu: Sigmund Freud, pai da Psicanálise! No livro O mal-estar na civilização, Freud afirma que existem, na cultura moderna e capitalista, três grandes adversidades para que sejamos felizes: os limites do nosso corpo (que mais cedo ou mais tarde irá morrer, e saber disso gera angústia); as grandes catástrofes (sendo a pandemia um exemplo evidente, do mesmo modo que enchentes, tsunamis e erupções vulcânicas) e os relacionamentos sociais.
Obviamente que os relacionamentos sociais podem também ser uma fonte de felicidade, mas se analisarmos bem são esses relacionamentos, quando não elaborados, nossa maior fonte de infelicidade. Daí que buscamos alternativas compensatórias (ou substitutivas) como o consumo de bens, e em grande medida o consumo abusivo – não só de drogas, mas de comida, de sexo, de incontáveis modalidades de lazer e mesmo de trabalho. Para termos um exemplo simples do desequilíbrio do consumo, basta olharmos para o quadro geral do país que veremos que, por um lado, aumentou o número de pessoas com insegurança alimentar, e que por outro, aumentou, durante a pandemia, o consumo de alimentos processados e de bebida alcoólica. Enquanto uns consomem muito pouca comida, outros consomem em excesso. Podemos também trazer um exemplo não tão óbvio desse modo de consumo: já reparou que muitas pessoas quando acabam de maratonar uma série em um fim de semana ficam quase deprimidas? O consumo da série foi tão compulsivo que ao final só restou um vazio, um sabor de infelicidade. É como comer muito e não conseguir saciar a fome. Vale dizer que Freud também apontou que a tendência por buscar diversões, gratificações substitutivas e substâncias inebriantes são características da nossa cultura.
Os grandes benefícios desse processo
De fato, se queremos melhorar a qualidade de nossas relações sociais, fazer terapia, principalmente em um momento historicamente crítico como o atual, é um recurso valiosíssimo, pois o que está em jogo no contexto da pandemia ameaça o bem-estar do corpo assim como modifica as relações com os outros seres humanos. E nesse sentido, reduzir as infelicidades de relações confusas é tão ou mais importante do que aumentar a ostentação da felicidade e essa é uma questão tão sutil que dificilmente será percebida por quem não busca entrar em processo terapêutico. Obviamente nenhuma terapia é garantia de felicidade, mas é um excelente recurso para diminuir a infelicidade que geralmente está nos relacionamentos – seja com a família, com amigos ou com colegas.
Só que muita gente quer mesmo é ostentar um presente de Natal para ganhar likes nas redes sociais. A questão é como se ostenta (se isso for realmente necessário) o resultado de uma terapia em redes sociais? Se ostenta com uma nova postura, menos dependente de querer agradar para perceber que se é amado. Uma postura mais centrada nos momentos que não precisam de retoques do Photoshop. E o detalhe mais importante é que um bom terapeuta não precisa ser indicado pelo Papai Noel, mas por nossa necessidade de superar os momentos infelizes que assombram qualquer mudança de ano. 😉
- Qual é o seu pedido para 2022? - 22 de dezembro de 2021