A educação pelo medo

A educação pelo medo

Uma vassoura, um chinelo, uma colher de pau e um cinto, qual desses psicólogos atendeu você?

É muito comum a reprodução deste tipo de post nas redes sociais, o que sempre me incomodava, mas muitas vezes como eram meus amigos que postavam, eu acabava curtindo e compartilhando e encarando com “bom humor”. No entanto, não conseguia perceber por que me incomodava. Aos poucos fui parando de compartilhar, pois não via sentido nenhum naquilo.

O post em questão exibia uma vassoura, um chinelo, uma colher de pau e um cinto, por cima um texto que pergunta: “Qual desses psicólogos atendeu você?”.

Eu mesmo nunca apanhei e acho que fui bem-educado. Meus pais, como qualquer ser humano, tinham muitos defeitos, mas este nunca foi um deles, nunca me bateram.

Eu também nunca passei por psicólogo quando criança e sobrevivi a várias frustrações na minha vida, entre elas a condição de pobreza em que vivíamos. Sempre fui um bom aluno, mas não conseguia entrar em faculdades, públicas ou privadas. Sempre estudei em escola pública e, obviamente, não estava suficientemente preparado para as exigências dos vestibulares da minha época.

Meu pai trabalhava em uma livraria, e um dos meus enormes prazeres da infância, era quando ele chegava trazendo meu material escolar novinho. Ah, aquele cheiro de livro novo era uma delícia… Depois ele me levou para trabalhar na mesma livraria. E lá, em meio aos livros e intelectuais, aprendi muita coisa, já que a televisão ou o rádio não transmitiam informações como fazem hoje em dia, havia censura prévia, mas eu era curioso e sempre fui incentivado a traçar este caminho.

Curiosidade é um perigo?

Sempre gostei de ler. Ia à banca de jornal comprar revistas em quadrinhos e lá sim era um universo paralelo para mim. Comecei a ler as manchetes de jornais, revistas e ver que existiam outros jornais que não eram exatamente os de maior circulação, mas diziam coisas que me instigavam sobre o que estava acontecendo no mundo e principalmente no Brasil.

Passei a comprar jornais e fui tomando contato com pessoas que tinham parentes sendo presos e torturados; pessoas conhecidas que de repente desapareciam, pessoas que eram como nós, cidadãos pobres e sem maiores perspectivas de vida, pessoas que apanhavam e sofriam simplesmente por ter uma maneira de pensar diferente.

Eram anos de chumbo, onde a Rota parava os ônibus e policiais faziam todos descerem e revistavam de maneira intimidatória qualquer cidadão, sem acusação nenhuma. E bastava ter algum livro ou jornal, daqueles que eu comentei há pouco, que era o suficiente para começar a apanhar ali mesmo. Eram coronhadas e cassetetes na cabeça, onde pegasse, não tinham preferência. Não tinham psicólogos, não tinham direitos humanos, não tinha cidadão, eram elementos. Batiam porque supostamente mereciam.

Alguns anos depois, consegui entrar numa faculdade privada através dos meus próprios meios, trabalhando e estudando à noite, mas ainda assim não consegui terminar, não tive condições de arcar com os custos da faculdade quando meu pai ficou desempregado.   

Educação pelo medo

Voltando ao post em questão, resolvi parar para pensar no que estava por trás daquele post que tanto me incomodava. Lembrei dos anos de ditadura que passamos. Eu era adolescente e à medida que fui crescendo me envolvi e tomei conhecimento sobre o que acontecia na cidade e no país.

Os pais que usavam os instrumentos apresentados no post da rede social reproduziam o que a sociedade estava vivendo, seus filhos eram espancados na mesma proporção que a polícia batia nos “elementos” na rua. Vi colegas meus apanharem de fio de ferro e outros instrumentos inadequados aos castigos.

E essa brincadeira aparentemente sem maldade do post revela o estágio de incivilidade em que nos encontramos. Uma sociedade que evoluiu tanto e tão rapidamente em tecnologia, mas, ao mesmo tempo, continua sendo uma sociedade racista, preconceituosa, machista e misógina que acha que resolve tudo no grito e na subjugação dos mais fracos ou menos privilegiados e demonstra uma terrível vontade de retornar aos tempos onde se educava filhos na paulada por pura preguiça de educar.

Nos tornamos uma sociedade em que não sabemos conviver uns com os outros; que está dividida em uma polaridade inconsequente, separando famílias e amigos.

Sim, muitos sobreviveram aos castigos desses instrumentos e vivem até que bem. Mas muitos carregam marcas e traumas profundas. Relativizar as situações do passado não faz os traumas desaparecerem. Vidas poderiam ter significados diferentes se não tivessem sofrido as consequências de castigos desmedidos.  

Alguns vão achar que é “mimimi” o que estou falando, mas, se tiverem coragem de refletir sobre suas próprias vidas, verão como suas relações familiares poderiam ser bem diferentes. Esses instrumentos serviram para subjugar crianças e adolescentes quando os pais não tinham argumentos para educar seus filhos e a única maneira de educar que tinham era através do medo, só eram respeitados quando impunham medo aos mais fracos. E esse autoritarismo permeou nossa sociedade por décadas e traz resquícios até hoje.

Educação como sinônimo de liberdade

Hoje, sou psicólogo, e no consultório sempre aparecem pessoas com traumas familiares em consequência de abusos físicos e psicológicos dos pais. Educar dá trabalho, mas quem ama educa[1], e bater, reprimir são as vias mais fáceis para famílias que se formaram sem educação básica de qualidade, sem planejamento e sem educação sexual.

A internet está aí para nos divertir, sim, mas também para aprendermos. Aprendermos a selecionar e para nos educarmos com conteúdos relevantes que nos auxiliem a cuidar dos nossos filhos sem violência “para não mostrar o corpo inteiramente marcado de história e a história arruinando o corpo”[2].

O home office veio para ficar. Serviços, escolas, professores, psicólogos, médicos e diversos outros profissionais estão utilizando a internet. Por meio dela, podemos encontrar uma liberdade jamais alcançada ou uma prisão sem paredes se não for utilizada de maneiras mais produtivas.

A internet é cada vez mais parte das nossas vidas, espaço no qual afetamos a vida de outras pessoas e somos afetados por elas. Linchamento virtual, cyberbulling, padrões de beleza e felicidade irreais, a expectativa de cada curtida, assim como as piadas supostamente inofensivas são coisas que afetam a vida de muitos de nós.

Podem gerar ansiedade, depressão, traumas, diversos distúrbios como anorexia e chegar a casos extremos (mas infelizmente não raros) de suicídios ou assassinatos. Por isso é essencial refletir sobre o que se pretende postar:

Será que estou sendo racista? Preconceituoso? Posso estar ofendendo alguém? Posso falar qualquer coisa a respeito de qualquer um?

Quais os limites da minha liberdade?

 

Referências Bibliográficas:

[1] Tiba, Içami. Adolescentes: Quem ama Educa! São Paulo: Integrare Editora, 2005.

[2] Foucault, Michel. Microfísica do Poder; organização e tradução de Roberto Machado-Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.

Wilson Passos Gomes
Últimos posts por Wilson Passos Gomes (exibir todos)
Deixe seu comentário aqui
Assine nossa newsletter

Outros posts que você também pode gostar

Assine nossa newsletter

Fique por dentro dos melhores conteúdos sobre bem-estar, saúde e qualidade de vida

Saúde mental, bem-estar e inovação que seu colaborador precisa

Através do nosso programa de saúde mental, as empresas reduzem perdas com afastamento do trabalho por demandas emocionais.