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Escrever pode ser terapêutico?

Diferentes linguagens em terapia

Cada vez mais se discute a função terapêutica das artes e da cultura. Quer seja inserida no contexto da psicoterapia, quer seja compreendida enquanto prática de autocuidado, não é tão incomum encontrarmos reflexões que trazem ao campo da psicologia diferentes linguagens e modos de expressão que vão além da fala.

Afinal, mais do que uma mera questão estética ou estilística, a produção artística também pode ser expressão de vivências e dimensões referentes à vida do autor que muitas vezes não são evidenciadas no dia a dia. 

Dentre essas formas de expressão que passaram a ser pensadas sob novas óticas e enfoques na psicologia, a linguagem escrita tem chamado atenção. Considerando suas diferentes modalidades e perspectivas, o ato de escrever pode trazer contribuições importantes para a prática psicoterapêutica e à relação que o próprio escritor estabelece consigo mesmo.

Independente da experiência, familiaridade, conhecimento ou domínio que o escritor tenha sobre a escrita, o que nos convoca nessa reflexão é o questionamento sobre quais os possíveis desdobramentos do ato de escrever (uma história, um diário, um conto, algumas anotações no guardanapo…) na vida de uma pessoa; sobre o que há de terapêutico na escrita.

Para tanto, é necessário que façamos alguns apontamentos relevantes quanto ao encontro terapêutico e suas características, para depois nos determos sobre os potenciais de cuidado da linguagem escrita.

Psicoterapia: Não julgamento, acolhimento e compreensão

Mas de onde partimos? Qual a compreensão sobre a psicoterapia que baseia nossas reflexões? Bom, é importante colocar que as discussões a seguir partem de uma perspectiva clínica fundamentada no olhar da Fenomenologia Existencial.

Isso quer dizer que, diferente de outras perspectivas que enxergam o paciente e seus comportamentos como resultados de determinações e estruturas de diversas ordens (biológicas, neurológicas, sociais, psíquicas, etc), partimos aqui de uma perspectiva clínica que compreende o ser humano em sua existência indeterminada, que habita em certo contexto histórico a partir de possibilidades abertas por projetos de sentido.

Por mais que seja muito teórico, é relevante esboçar brevemente a compreensão de ser humano que norteia nossa reflexão, uma vez que ela possibilita prosseguirmos com a discussão sobre a prática terapêutica. Prática esta que, mais do que buscar causas e fatores que expliquem determinados comportamentos, exige do terapeuta uma disposição especifica: manter-se presente, escutando e acompanhando com atenção aquilo que é trazido pelo paciente.

As perguntas e colocações feitas pelo terapeuta devem partir dessa disposição, contribuindo para que a narrativa complexa que o paciente é se torne cada vez mais visível para ambos.

Nesse sentido, o espaço terapêutico é um lugar em que, pautando na compreensão, não julgamento e acolhimento, o paciente pode ser ele mesmo. É um encontro entre duas pessoas em que uma delas pode confiar na qualidade da escuta do outro para contar sua história, mostrar quem realmente é e trazer aquilo que dificilmente aparece em outros momentos. O espaço terapêutico é onde o paciente busca se reapropriar de si mesmo.

O encontro terapêutico como encontro poético

Enquanto encontro entre duas (ou mais) pessoas, a terapia se dá por via do diálogo; um diálogo específico entre paciente e terapeuta, permeado pela linguagem poética. Poética que, em sua etimologia grega (Poíesis), remete ao ato de desocultar algo, de evidenciar alguma coisa, de criar ou produzir um sentido mais amplo perante o vivido. 

É justamente a partir deste diálogo poético, em que um fala e o outro escuta atentamente, que o “terapêutico” da terapia pode ocorrer. Mais do que isso, há de se enfatizar o ponto central que a linguagem poética ocupa no encontro terapêutico, afinal, a terapia não se dá apenas através da linguagem, mas também se dá na própria linguagem.

É a diferença entre a linguagem enquanto meio (“ponte” entre interlocutor e locutor) e a linguagem como lugar (espaço habitável) que possibilita que o paciente expresse suas vivências, ao mesmo tempo que ressignifique elas e suas possibilidades.

Dotada de sentido e possibilitando que nos expressemos, a linguagem (falada, escrita, corporificada) ainda é mais: assim como na terapia, é na linguagem que nós, seres humanos, habitamos e nos locomovemos pelo mundo, relacionando-nos com ele e com nós mesmos. Um processo terapêutico que busque compreender o paciente em sua complexidade tem de levar em conta a indissociabilidade da existência humana com a linguagem, uma vez que a terapia apenas é possibilitada porque somos entes na (e não apenas de) linguagem.

Para além da expressão: a poética da escrita

Como exposto anteriormente, a escrita pode ser um potente recurso para que o escritor expresse suas vivências. Mas, além disso, também é importante que levemos em conta a dimensão poética da escrita; isso é, a escrita enquanto lugar de construção, experimentação e ampliação de sentidos

No nosso dia a dia é comum que mantenhamos um uso específico da linguagem: a correria do cotidiano e o convívio social exigem que algumas convenções e combinados sejam feitos, entre eles, um consenso mínimo sobre o que é falado e escrito.

Desta forma, na maioria das vezes nos deparamos com a linguagem como um sistema pronto, enrijecido, como se cada palavra estivesse engessada ao seu significado. O espaço terapêutico, permeado pela linguagem poética, é justamente um dos lugares em que esses consensos e imperativos podem ser questionados e repensados, sempre visando a experiência do paciente.   

Tal qual o encontro terapêutico, ao escrever, podemos nos relacionar de uma maneira diferente com a linguagem: uma relação menos automática e mais cuidadosa com as palavras, no qual significados, antes não tão claros, se tornam mais evidentes e sentidos são ampliados. É a partir dessa relação de cuidado e intimidade que se torna explicito quanto nós, seres humanos, somos íntimos da linguagem. 

Ao aproximarmos da linguagem de maneira poética, nos aproximamos de nós mesmos

Dimensões terapêuticas da escrita 

Por fim, é importante deixar claro que este texto não propõe que a escrita (seja qual for sua modalidade, forma ou finalidade) substitua a terapia ou qualquer tratamento especializado. Mas sim, que a escrita possa ser utilizada e incentivada enquanto complemento ao processo terapêutico, assim como pode ser uma aliada do paciente.

O ato de escrever pode representar um momento de expressão e construção do vivido; um espaço poético por excelência. Tal qual o encontro terapêutico, a escrita é um lugar em que podemos nos encontrar com nós mesmos; a partir das palavras, dos espaços, das pontuações e dos silêncios expressos ali.    

Convido os leitores (pacientes, terapeutas, escritores, leitores, entusiastas, etc.) a refletirem sobre a relação que mantém com a linguagem escrita. Mais do que isso, proponho que experimentem mais atentamente este ato e se questionem:

 

Referências

FEIJOO, Ana Maria Lopez Calvo de. A clínica Daseinsanalítica: considerações preliminares. Rev. abordagem gestalt., Goiânia, v. 17, n. 1, p. 30-36, jun. 2011. 

HEIDEGGER, Martin. A linguagem. In: ____________________. A caminho da linguagem. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2003a. p. 7-26.

____________________. Seminários de Zollikon – ed. Medard Boss; trads. Gabriella Arnhold, Maria de Fátima de Almeida Prado. – São Paulo: EDUC; Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2001.

LÁZARO, Débora. O corvo e a escrivaninha: ensaios. Rio de Janeiro: Via Verita, 2017.

NEGREIROS, Tomás Fiore. Sobre escrita e existência: pelo cuidado colocado em palavras; 2019. 79 f. Trabalho de Conclusão de Curso; (Graduação em Psicologia) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2019.

POMPÉIA, João Augusto; SAPIENZA, Bilê Tatit. Na presença do sentido: uma aproximação fenomenológica a questões existenciais básicas. – 2 Ed. São Paulo: EDUC; ABD, 2014.