Saúde mental e criminalidade – o mal do estigma

Saúde mental e criminalidade – o mal do estigma

Em novembro de 2016, duas tragédias chamaram a atenção dos noticiários nacionais: em São Paulo, um ex-marido inconformado ronda o prédio onde vive a ex-companheira, fica à espreita no corredor de seu apartamento durante duas horas, até que, finalmente, consegue invadir a residência e a mata, com quatro tiros. Em Goiânia, um engenheiro civil, ao enfrentar grave discordância referente à posição política de seu filho, o persegue e mata, e depois se suicida.

O que há em comum nesses dois casos? Em ambos, em algum momento questionou-se a sanidade mentaldos autores dos atos violentos. O assassino da ex-esposa, que estava foragido, foi encontrado pela polícia internado em uma clínica psiquiátrica.

Esse assunto, apesar de pesado, nos traz reflexões importantes:

Conceitos de saúde mental

Segundo a Secretaria de Saúde Pública do Paraná, saúde mental consiste na capacidade de equilibrar o universo interno — emoções, impulsos, convicções, princípios etc. — com os estímulos exteriores, como demandas do dia a dia, acontecimentos ou conflitos.

É saber lidar com o mundo exterior de forma autônoma, sem perder o controle e a noção de tempo e espaço. A “percepção adequada da realidade” é um critério fundamental para definir o quão saudável e equilibrada uma pessoa pode ser.

Segundo o psiquiatra australiano Aubrey Lewis, a doença mental pode se caracterizar por evidente perturbação de funções parciais e do funcionamento geral. Essas funções consistem em percepção, memória, aprendizagem, emoção e outras funções psicológicas.

No entanto, torna-se muito difícil um diagnóstico exato de doença psicológica, o que leva os profissionais da área a analisarem sintomas como delírios, alucinações, severas alterações do humor ou outra perturbação grave das funções psicológicas. No entanto, sabe-se que existem particularidades pontuais de cada paciente, e a linha entre causas comportamentais e saúde mental é muito tênue.

Saúde mental e criminalidade

Ambos os casos e outros mais geram dúvidas a respeito da sanidade mental dos criminosos envolvidos. Longe de querer problematizar a condição mental desses dois indivíduos, fato é que as atitudes não se justificam em uma percepção alterada ou deturpada da realidade, mas com certeza esse é um fator que permeia os acontecimentos.

No entanto, vincular saúde mental — ou a falta dela — à criminalidade seria, de fato, uma resposta ou apenas mais um obstáculo para a sociedade compreender a complexidade da diversidade dos indivíduos?

Em diferentes pesquisas realizadas na Escócia, na Alemanha e na Islândia, apenas uma pequena porcentagem foi identificada como caso de doença psiquiátrica entre os homicídios analisados. Ou seja, a maioria esmagadora das pessoas com doença mental não é violenta, assim como a maior parte das pessoas violentas não possui nenhum distúrbio psicopatológico.

Segundo pesquisa apresentada n’O Globo online, pode-se classificar um crime como relacionado à doença mental quando os sintomas desta contribuem para o ato. Os casos em que se pode atribuir um feito criminoso violento diretamente à causa de psicopatologia são muito restritos.

No entanto, vemos que, historicamente, existe um estigma que associa falta de saúde mental a violência e criminalidade, sem uma análise adequada das causas adjacentes.

Existem, portanto, outros questionamentos que deveriam ter sido feitos nos casos abordados, como o fato de essas vítimas sofrerem com a cultura do machismo e da intolerância, respectivamente, entre outros fatores. Essa percepção ficou nublada diante da possibilidade de os autores “não estarem em seu juízo perfeito”.

Durante muito tempo, associou-se “anormalidade” à criminalidade, e essa relação frágil e pouco coerente ainda ronda o imaginário popular até os dias de hoje. No cotidiano, é possível ver várias famílias que definem o paciente portador de transtorno mental como “perigoso”, “um risco à sociedade”. Muitas vezes, o trabalho de sensibilização dessas famílias é quase tão ou mais difícil do que o trabalho com o próprio paciente psiquiátrico.

Quando se dá o destaque ao quadro mental de um autor de ato violento em detrimento de todos os outros fatores que levaram aos fatos, reforça-se o estigma de que o “louco” é necessariamente perigoso. A busca por ajuda, que já é comumente tão difícil para uma pessoa que sofre com os mais diversos quadros — ansiedade, angústia, depressãofobiaspânico, esquizofrenia, entre tantos outros — torna-se algo ainda mais penoso.

A influência do estigma na busca por tratamento

Segundo este artigo de um especialista em tratamento psiquiátrico, a maioria das pessoas com algum transtorno mental não procura ajuda por conta de causas como estigma, medo, preconceito, entre outras. Por mais que a sociedade já esteja consciente da existência e da recorrência desses casos, os problemas de saúde mental isolam um indivíduo socialmente, gerando falta de compreensão, descredibilidade e até desrespeito.

A empatia é um ótimo caminho para o tratamento de doenças psiquiátricas e uma necessidade latente do paciente. Indivíduos com transtornos mentais precisam de apoio de familiares, pessoas de confiança com quem podem contar em momentos de crise e compreensão social.

Portanto, a associação direta e generalizada do distúrbio com um comportamento tão negativo, violento e até criminoso cria ainda mais barreiras para pessoas que sofrem de doença mental e estão dispostas a buscar tratamento. Além disso, dificulta o trabalho de resolução de crimes e assistência às vítimas em casos em que não necessariamente há relação.

A última coisa que um portador de transtorno mental precisa é de um rótulo. O tratamento — psicoterapêutico e, eventualmente, até mesmo psiquiátrico — é fundamental para garantir o protagonismo do paciente em relação à sua própria vida, mas para isso é necessária a aceitação do quadro, livre de preconceitos. A estatística é de 70-90% de pessoas com transtorno psiquiátrico melhoram bastante sua qualidade de vida após receberem tratamento.

Quando analisamos, vemos que existe uma discrepância entre os dados que apoiam associar transtornos mentais à criminalidade e os resultados positivos de tratamentos psiquiátricos — e que essas pessoas são cada vez mais incentivadas por uma visão empática da sociedade e pelo apoio de familiares.

Como essa associação entre saúde mental e criminalidade não é um fator que incentiva o tratamento com muita possibilidade de sucesso, fica a reflexão: o caminho para lidar com a doença mental seria o estigma e o preconceito, ou a empatia e a compreensão? Podemos abrir mão de associações generalistas e rótulos? Deixe um comentário neste post com a sua opinião sobre o assunto e participe da discussão!

 

Bruna Paschoalini
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