Fico abalada(o) emocionalmente quando alguém me chama de gorda(o)

Fico abalada(o) emocionalmente quando alguém me chama de gorda(o)

Um pouco de história

Foi a partir do iluminismo que o ser humano sentiu-se instigado a ampliar seus conhecimentos e  investigar cada vez mais a dinâmica do indivíduo e sua relação com o mundo. Partindo de conceitos filosóficos, o que  provocou conflitos na relação entre o homem e sua fé divina, atravessando a soberania cristã e introduzindo a racionalidade científica. 

Com o iluminismo a gordura ganhou significado e múltiplas possibilidades de querer interpretar o sujeito gordo. Surgem interrogações e comparações, não sobre a pessoa, e sim sobre a dimensão corporal. Mulheres e homens em suas formas roliças e avantajadas: elas, delicadas e graciosas, eles, os glutões de apetite voraz aos poucos vão sendo afundados em questionamentos e associados a indivíduos sem energia, sem força, sem sensibilidade e de humor irritado. “o gordo torna-se impotente – estigmatização inseparável de seu tempo” (Vigarello, 2012).

Começamos a apreciar o corpo e com isso a classificar e escolher modelo físico de ser humano. Dietas e shakes se apresentam como sinais de um desejo de ter o corpo que passa pelo crivo do patriarcado que valida e dita, e a sociedade aprecia, e cada vez mais padroniza o corpo e amordaça a alma.   

A globalização potencializa a indústria da moda, a divisão de classe fica cada vez mais evidente assim como as gorduras que sobram saltando fora da vestimenta. Logo, a era da classificação do gordo: tipos de gorduras, tipos de corpos, tipos de humor, tipo de relacionamento, tipo de gente, tipo de gordo/a.  Engraçado/a, preguiçoso/a, mal humorado/a, paga pau da turma, pega ninguém, idiota da sala, faz tudo no trabalho, não recebe convites, guloso, esfomeado, baleia, elefante. Do que mais já lhe apelidaram? 

É fácil ser magro(a) para quem a genética está alinhada para tal. No mais, é preciso contar com a sorte, dinheiro, disposição psíquica, interesses e motivações, ou seja, nem tudo é questão de condicionamento  e jogos de recompensa, servir o padrão dói. “Pode haver, por trás de quaisquer distúrbio metabólico, tanto causas de ordem fisiológicas como causas de natureza psicológicas” (Woodman, 2020). Pois ser ou estar gordo é “também” disposição genética, antes de ser avaliado pela quantidade de tecido adiposo, há um inconsciente que direciona o sujeito por meio de afetos, traumas e imagens que são totalmente desconhecidos por este mesmo.

Para quem sofreu preconceito na infância, ou ainda na vida adulta, as marcas afetivas perpassam a alma, mutila, definha o intelecto daqueles que se sentem atraídos a corresponder aos padrões de beleza e estética. É comum ouvir relatos de descriminação, preconceitos acerca do olhar desaprovador de corpos distintos: magros demais, gordos demais, grande aqui pequeno ali etc.

Reações e julgamentos que não deveriam existir, porém essa é a realidade humana e que reflete o tratamento perverso sociocultural dado a pessoas gordas ou a indivíduos que não correspondem aos padrões apelativos da mídia, do marketing, das redes sociais e também do machismo. “através dos acontecimentos diários, dos traumas na infância, da história pessoal de cada um: lembranças esquecidas, pensamentos impressões, incômodos e desejos reprimidos” Baratta,(2000), que nos tornamos quem somos.

O contexto atual convida-nos a refletir sobre o que estamos permitindo que nossos olhos e ouvidos vejam e ouçam sobre como e de que maneira os afetos estão sendo tocados, estimulados e validados diariamente frente ao modelo que é deveras injusto ao mesmo tempo atraente. Exigir um padrão é interessante quando referido a coisas, porém quando relacionados a pessoas e corpos, padrões devem cair por terra. A perfeição  física é ilusão, é injusta, preconceituosa e excludente, geradora de adoecimento mental.

Sobreviver sem sequelas dessa violência sistêmica sobre os corpos é custoso demais, requer trabalho longo e parceria de todos os envolvidos. 

Falar  sobre corpo é também refletir acerca de doença e saúde mental, isso porque não se trata de entidades separadas e sim de um sistema, um sistema maravilhoso e lindamente perfeito que é o ser humano e sua totalidade.

Saber quem é você perpassa o pensamento ou ideia de querer ser, mas sim do desafio de sentir-se, perceber-se, e ter coragem de tocar seu corpo e sua alma, marcada pelo medo, pela vergonha e inseguranças, porém com integridade.

Por décadas essas pessoas não tinham voz, nem eram compreendidas, muitos não são ainda. Existem muitos movimentos, grupos e influencers que estão fazendo um papel muito importante de aceitação e respeito à singularidade dos corpos. Vejo isso como um trabalho colaborativo, representativo e caminhos possíveis. São pessoas que estão ajudando umas às outras a fazer o caminho de volta pra casa. É um retorno ao lar, um resgate da  própria intimidade, a esse corpo, essa entidade sagrada. O restabelecimento do eu, um “Eu” que deseja inconscientemente maternar-se sozinho.

Uma análise junguiana do problema

A partir do ponto de vista da psicologia analítica tomo a liberdade de dizer que determinados conteúdos psíquicos inconscientes permanecem na sombra até o momento em que o indivíduo é capaz de reconhecê-lo, enquanto não são reconhecidos e desmonetizados podem causar prejuízo nos relacionamentos profissionais, familiares, amorosos inclusive no relacionamento consigo mesmo.

Trazer luz para aquilo que nos mobiliza emocionalmente em forma de dor, medo, raiva, insegurança e culpa e que ainda não está claro promove autoconhecimento, facilita enfrentamento do conflito.  

Uma pessoa gorda ou que se torna gorda, pode sim ser alguém sensível, melancólico, tímido, estressado, magoado. Não pelo seu  corpo, mas pela sua trajetória. Ele é um ser humano estigmatizado e não compreendido por uma sociedade marcada por desigualdades, preconceitos e exclusão, esses são delineadores importantes na formação psíquica de uma criança. Crianças não resolvem problemas, elas apenas reagem emocionalmente a partir do instinto de proteção.

Quando alguém de alguma maneira é chamado de gordo, ocorre mobilização emocional que pode ser de raiva, de tristeza, vergonha, sentimento de inferioridade ou de vingança etc. É uma reação comum de autodefesa, um comportamento de fragilidade. Porém é importante entender que foi dessa maneira que o indivíduo aprendeu a se defender desde criança e que provavelmente não pode contar com orientações adequadas.

Quando alguém ou um evento mobiliza emoções, estas acionam o sistema de dor e ao mesmo tempo de autodefesa. É importante dar atenção a esse movimento psíquico.  

Os resultados dos traumas emocionais nem sempre estão ao alcance da consciência na vida adulta. É necessário auto escuta, condução adequada, elaboração e respeito a si mesma e a sua história. “Se o desenvolvimento da consciência for perturbado no seu desabrochar natural, ela para escapar das suas dificuldades externas e internas, isola-se em uma “fortaleza” íntima.” (Von Franz, 2008).

Quando uma criança sofre violência e ela não é orientada, acolhida e também não recebe recursos emocionais, quando se torna adulto é possível que este também não encontre meios para tal façanha, pois sua estrutura  egoica é frágil e seu sistema de auto defesa é deficiente e semelhante ao de uma criança. 

“Para a pessoa que vivenciou uma dor insuportável, a defesa psicológica da dissociação permite que a vida exterior prossiga, porém a um grande custo interior. O trauma externo termina, e os seus efeitos podem ser, em grande medida, “esquecidos”, mas as sequelas psicológicas do trauma continuam a assombrar o mundo interior”(Kalsched,2013).

A sensibilidade emocional que  provoca desconfortos emocionais na vida adulta pode ter raízes em diversas questões que não foram bem elaboradas. Porém, para viver no mundo dos adultos com o mínimo de conflito é importante saber ser adulto: enfrentar conflitos, resolver problemas e responsabilizar-se por suas próprias atitudes, além de gerir a própria vida. A criança defende-se instintivamente, através do  medo, do choro, da birra, escondendo-se, retrucando e até mesmo evitando contato com o outro. 

É possível ter um novo olhar para experiências desagradáveis, a questão é quando você pretende resgatar  suas próprias ferramentas, deixar seu eu interior, utilizá-las com criatividade, força e de maneira que você mesma possa conhecer-se e conduzir-se para o mais próximo possível do seu Eu verdadeiro.  

 

Referências Bibliográficas:

Jung, Carl Gustav et al. O homem e seus símbolos: 2 Ed especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

Woodman, Marion. A coruja era filha do padeiro: Um estudo revelador sobre a anorexia nervosa, obesidade e o feinino reprimido. 5 Ed. São Paulo: Editora Pensamento Cultrix, 2020.

Jung, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Perópolis, RJ : Vozes, 2000. 

Kalsched, Donald. O mundo interior do trauma: defesas arquetípicas do espírito pessoal:  São Paulo: Paulus, 2013. 

VIGARELLO, G. As metamorfoses do gordo: história da obesidade no ocidente da

idade média ao século XX. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.

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