As exigências de perfeição na cultura do cancelamento

As exigências de perfeição na cultura do cancelamento

Vivemos em uma sociedade do desempenho, da eficácia, da pressa, do cansaço, onde não há espaço para reflexão, pois ela tomaria um tempo que poderia ser convertido em produtividade. Em uma sociedade da positividade onde não há lugar para erros, fracassos, desistências ou frustrações, a violência é sentida em silêncio, a pessoa implode, a repressão externa gera pressão interna, autoexploração e autoagressividade.

A pessoa em sofrimento se vê impossibilitada de expressar seus sentimentos, e caso o faça, é reprimida, de um lado pelo discurso de positividade incondicional mascarado por frases motivacionais, e do outro por esse nosso jeito bélico de ser, carregado por uma lógica punitivista e cruel. 

Nesse cotidiano bélico em que vivemos, cria-se uma tóxica ficção de que todo mal, todo erro, está ou vem do outro. Os tropeços que damos estão cada dia mais inaceitáveis e, está se tornando cada vez mais comum encontrar pessoas que, ao invés de assumirem suas responsabilidades em relação àquilo que lhes aconteceu, acabam atribuindo essas coisas aos outros.

A busca incessante por pertencimento

A sociedade do cansaço estimula o medo do desconhecido, do inesperado, do incontrolável e nos perdemos em meio à nossa insegurança. A mídia vende a perfeição, mas esconde o processo até se chegar ao nível de excelência.

A realidade processual que exige esforços, longo prazo, investimento, e que muitas vezes diz de privilégios, é maquiada como solução simples e rápida para todos os seus problemas. Busca-se estabilidade, continuidade, inércia em um mundo pendular, querem enquadrar nossa complexidade em caixinhas e simplificar nossa existência. Deixamos de validar o percurso, o processo, a trajetória, desaprendemos a apreciar o que acontece devagar. 

Perdidos em meio aos medos e inseguranças nesse contexto de imposição e julgamento, não é difícil de imaginar que muitos estariam em busca de pertencimento e aceitação. Somos seres sociais e estarmos vinculados a um grupo de apoio pode ser um fator de proteção para a nossa saúde mental. Mas também pode representar um fator de risco.

Há grupos que pressupõem anular a singularidade da forma de pensar, das convicções e desejos de seus integrantes para que estes se adequem a determinado padrão estabelecido pela opinião dominante ali, são capazes de tudo para defender a integridade de seus ideais e o cumprimento de suas normas. 

A homogeneidade nos grupos sociais

As pessoas abdicam de suas características mais singulares para fazer parte de um grupo que impõe a homogeneização, a perfeição e a intolerância à diferença. Há uma necessidade de responder ao imperativo contemporâneo, querem pertencer, buscam aprovação.

No entanto, tais grupos cobram uma dimensão exata de quem somos e qualquer sinal de mudança é visto como uma contradição e considerado fator de exclusão desse grupo tão “coeso”. 

Os membros de grupos nocivos como estes estão atentos a encontrar falhas no outro e sedentos por conflito, não importa o alvo, sobrevivem através da dominação de indivíduos que se limitam a obedecer, consentir, e renunciam ao seu potencial de questionamento. Numa premissa de superioridade, vestem-se da normalidade para reproduzirem rótulos de cunho pejorativo a outros que não se adequam ao que acreditam.

A violência existente nessas relações se alimenta do medo e da vulnerabilidade encobertos no dia a dia. 

Os famosos palanques virtuais

Os mecanismos de recompensa online estão substituindo a busca por aprovação na vida real e para mostrar que não é machista, homofóbico ou racista, a pessoa aponta o dedo para quem é.

Usa-se o argumento da liberdade de expressão para disseminar discursos de ódio e opressão, baseados na superficialidade e no silenciamento dos desejos e necessidades alheias, dessa forma, se julga “onipotente” e declara violência a qualquer sinal de perda dos holofotes, quando isso ocorre vê a necessidade de levantar a voz para preencher a discussão.

Nesse contexto, são criados palanques virtuais que implicam a obrigatoriedade de que todos se pronunciem. Quanto menos autonomia, emancipação, criticidade, reflexão e mudança, mais reprodução, aceitação, dominação, absolutismo, alardes, inimigos e medos.

Desenvolver senso crítico e questionar seus valores fundamentais são ótimos caminhos para o autoconhecimento, mas a procura por si mesmo, questionar-se, toma tempo e dá trabalho.

Então, para muitos, seguir a maioria parece ser muito mais atrativo. Fazer o que fazem porque sempre foi assim. Mas, se não enfrentarmos essa situação, raramente diremos no espaço público o que pensamos e mais facilmente nos alienamos às opiniões alheias.

Afinal, o cancelamento é bom para quem?

O movimento nasceu com o objetivo de evidenciar pautas importantes de minorias sociais, tornou possível que diversos casos de abuso e violência sexual por parte de celebridades, autoridades, pessoas que em outro contexto seriam inacessíveis, fossem denunciados, visto que sem uma repercussão viral, teriam sido facilmente abafados.

Mas a complexidade do movimento foi sendo relativizada com o tempo e o seu objetivo desvirtuado, se antes havia uma tentativa de reparação de impunidades fundamentadas e direcionadas às instituições e figuras com grande influência, hoje vemos linchamentos entre pares por quaisquer comportamentos que não condizem com o ideal compartilhado.

O cancelamento em si não é bom para ninguém, pois impossibilita que o sujeito possa reparar danos. Ao decretarmos o cancelamento, estamos fazendo do sujeito o seu comportamento, colocando em cheque seu papel social e retirando dele o direito de se retratar. Como identificar se um comentário foi feito por preconceito ou ignorância, se não deixamos que a pessoa se expresse?

Ao silenciar pessoas, impedimos que elas possam aprender com os erros que cometem e que nós mesmos possamos aprender com a situação que ocorreu.

E como não estar à mercê da opinião alheia?

Quando desenvolvemos nossa autonomia assumimos a autoridade sob nossas vidas, não precisamos buscar supostas justificativas para nossas falhas ou elencar inimigos fictícios. Reaprendemos a debater, a discordar sem ferir, a agregar conhecimento.

Reconhecemos que nossa visão de mundo é limitada e que ainda temos muito o que aprender. Oferecemos e aceitamos a oportunidade de mudança, ao fomentarmos uma discussão sadia e construtiva.

É preciso manter viva a estranheza desse cotidiano bélico, desconstruir a ideia de que tenho que ser melhor do que o outro, esconder minhas imperfeições, ou viver armada, vendo potenciais inimigos em todos os cantos, como se estivesse pronta para a guerra.

Ao me posicionar, faço minha parte para promover a quebra das hierarquizações, ter criticidade, questionar os sistemas, sair da minha bolha e expandir minha consciência. Só conseguiremos isso, se nos permitirmos enxergar o mundo que existe através do olhar do outro, e com isso deixo a vocês algumas reflexões:

Não conseguiremos melhorar a qualidade de nossas relações se não escutarmos realmente o outro, se não nos importarmos, se estivermos centrados em nossas próprias falas, sem compreender a alteridade e a qualidade do que é diferente, do desconhecido.

Que palavras temos usado para construir nossa história? Por que naturalizar a tirania da linguagem? O que ganhamos agindo como juízes, vilanizando pessoas e seus comportamentos a partir de nossos critérios morais?  

 

Lara Monteiro Moreira

Psicóloga Clínica e Gestalt-terapeuta

CRP 04/58488

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